Governo vende dados dos cidadãos … A ANPD vai colocar o guizo no gato?

Ana Amelia Menna Barreto

Quem controla o controlador?

No país em que não se morre de tédio a Receita Federal autorizou o SERPRO a vender dados pessoais da população brasileira, sem consentimento de seus titulares, fazendo um caixinha para custear sua infraestrutura.

Após se fingir de morta em episódios anteriores – vazamentos e ofertas de degustação pelo Poder Executivo Federal de dados pessoais de cidadãos sob sua guarda -, a ANPD divulgou ‘nota de esclarecimento’ comunicando que tomou conhecimento do fato e instaurou processo administrativo com intuito de avaliar a adequação do normativo às disposições da LGPD.  A efetividade de sua atuação no caso será conferida no futuro.

A Portaria 167/2022 da Receita Federal autoriza o SERPRO – a disponibilizar para terceiros, acesso a dados e informações sob gestão da Receita Federal – conforme Portaria MF 457/2016.

A gravidade da questão reside na necessidade de efetivo controle desse incontrolável guardião.

De forma genérica o texto normativo informa que:

. ‘A disponibilização de acesso a dados e informações destina-se à complementação de políticas públicas, voltadas ao fornecimento de informações à sociedade, através de soluções tecnológicas complementares às oferecidas pela RFB’.  Sabe-se lá o que isso significa …

. Tem permissão legal de realizar tratamento para o cumprimento de políticas públicas.  Quais seriam essas políticas …?

. Assegura a implementação de processo de identificação de risco institucional ou risco ao sigilo da pessoa física ou jurídica a que se referem os dados e informações. Não diz qual processo …

. Dará acesso a dados e as informações mediante a apresentação do argumento de consulta estabelecido para cada conjunto de dados e informações, nos termos do Anexo Único. Quais argumentos serão acatados? Quem pode pedir o quê e a quem?

Balizas legais

O Poder Público tem acesso aos dados constantes de suas bases, mas não é o dono deles.

A LGPD estipulou regras e limites para o tratamento de dados pessoais custodiados pelo Poder Público: deverá ser realizado para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres.

Como fiel guardião dos dados pessoais de terceiros, eventual compartilhamento deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de proteção de dados pessoais elencados na Lei.

A transferência de dados pessoais a entidades privadas – constantes de bases de dados a que tenha acesso – somente poderá ocorrer em casos de execução descentralizada de atividade pública que exija a transferência, exclusivamente para esse fim específico e determinado, observada a LAI; nos casos em que os dados forem acessíveis publicamente, observadas as disposições legais; quando houver previsão legal ou a transferência for respaldada em contratos, convênios ou instrumentos congêneres; ou  na hipótese de a transferência dos dados objetivar exclusivamente a prevenção de fraudes e irregularidades, ou proteger e resguardar a segurança e a integridade do titular dos dados, desde que vedado o tratamento para outras finalidades.     

Autoridade Nacional de Proteção de dados

Deve ser comunicado à autoridade nacional a transferência de dados respaldados em contratos e convênios, assim como uso compartilhado de dados pessoais de pessoa jurídica de direito público a pessoa de direito privado (pendente de regulamentação).

A Autoridade pode estabelecer normas complementares para as atividades de comunicação e de uso compartilhado de dados pessoais e sobre as formas de publicidade das operações de tratamento. A qualquer momento pode solicitar aos órgãos e às entidades do poder público a realização de operações de tratamento de dados pessoais, informações específicas sobre o âmbito e a natureza dos dados e outros detalhes do tratamento realizado, podendo emitir parecer técnico complementar para garantir o cumprimento da LGPD.

A apuração da constitucionalidade dessa Portaria da RFB passa obrigatoriamente pela análise das normas jurídicas, pela obediência aos comandos legais de maior hierarquia e da verificação da autorização expressa exigida no Direito Público, avaliada a permissão de compartilhamento de dados pessoais sem autorização do titular, escudado no requisito ‘da necessidade de desenvolvimento de políticas públicas’.

O ato administrativo que autorizou a fuga de dados sob proteção pública deve respeito à ordem de prevalência legal, sob pena de nulidade de pleno direito

Paradoxo

Como responsável por organizar a proteção e o tratamento de dados pessoais no país, ao invés de embalar nossos dados no berço da segurança, o Poder Público os comercializa e aufere lucro.  

Ecossistema normativo

O dever de casa da ANPD está aqui:

  • Constituição Federal

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm

  • EC 115 – Altera a Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm

  • Lei complementar 95/1998 – Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp95compilado.htm
  • Lei 12.527/98 – Lei de Acesso à Informação

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm

  • Lei 13.709/18 – Lei Geral de Proteção de Dados

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

  • Decreto 10.139/2019 – Dispõe sobre a revisão e a consolidação dos atos normativos inferiores a decreto.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10139.htm

  • Decreto 10.206/2020 – Dispõe sobre a qualificação do Serviço Federal de Processamento de Dados no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República e sobre a sua inclusão no Programa Nacional de Desestatização.

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.206-de-22-de-janeiro-de-2020-239407160

  • Portaria MF 457/2016 – Dispõe sobre a disponibilização de acesso, para terceiros, pelo Serviço Federal de Processamento de Dados, a dados e informações que hospeda, para fins de complementação de políticas públicas.

http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=92167

  • Acordo de Cooperação Técnica 04/2021 – que entre si celebram a Receita Federal do Brasil e as Secretarias de Fazenda, Economia, Finanças ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal, relativo à implantação do ambiente centralizado de serviços das administrações tributárias federal e estaduais.

https://www.confaz.fazenda.gov.br/legislacao/Convenios-de-cooperacao-outros2/acordo/act-04-21

  • Portaria RFB 167/2022 – Autoriza o Serviço Federal de Processamento de Dados a disponibilizar acesso, para terceiros, dos dados e informações que especifica.

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-rfb-n-167-de-14-de-abril-de-2022-394181490

Revoga 12 Portarias da RFB: 2.189/2017; 849/2020; 1.079/2020; 4.255/ 2020; 4.794/ 2020; 12/ 2021; 27/ 2021; 38/ 2021; 62/ 2021; 87/ 2021; 147/2022 e 153/ 2022

Conjuntos de dados e informações tornados acessíveis pela Portaria RFB

  1. CPF
  2. CNPJ
  3. CND
  4. Conhecimento de Embarque-Mercante – Consulta da Data da Última Atualização
  5. Manifesto – Consulta da Data da Última Atualização
  6. Escala – Consulta da Data da Última Atualização
  7. Consulta a Dados – Conhecimento de Transporte Marítimo (CE-Mercante)
  8. Consulta a Dados do Manifesto Marítimo
  9. Consulta a Dados do Manifesto Marítimo
  10. Nota Fiscal Eletrônica (NF-e
  11. Declaração de Importação – Consulta à Data da Última Atualização
  12. Consulta à Declaração de Importação
  13.  Declaração de Importação – Consulta Avulsa do Vicomex
  14.  Procurações
  15.  Caixa Postal
  16.  Caixa Postal – Detalhes Mensagens
  17.  Caixa Postal – Indicador de Novas Mensagens
  18.  DARF – Consolidar e Emitir     argumento de entrada
  19.  DCTF – WEB – Validação Autorização          argumento de entrada
  20. Integra Simples Nacional       argumento de entrada
  21. Integra PGDASD-CONSULTAS
  22. Integra DEFIS-CONSULTAS
  23.  Integra DEFIS-Entregar Declaração    argumento de entrada
  24.  Integra DASNSIMEI   argumento de entrada
  25. Integra PGMEI   argumento de entrada
  26. Integra PGDASD  argumento de entrada
  27.  Consulta Comprovante de Pagamento

Crédito imagem: Foto de Mermek AM no Pexels

Ana Amelia Menna Barreto

Mestre em Direito, Advogada e Docente pioneira no Direito Digital, Consultora legal em privacidade e proteção de dados pessoais